LETÍCIA
Hélio José lima penna
- Letícia reclamava que os colegas a chamavam
de encardida, quando ela passava. Minha filha sempre foi muito alegre; mudou de
uma hora pra outra. Chegou em casa chorando. A diretora dizia que era bobagem,
coisa de criança, que ia repreender os meninos. Mas acho que a diretora não fez
nada, pois, na semana passada, Letícia sumiu da escola, depois de uma confusão
no recreio. Eu larguei o trabalho, fui procurar minha filha. Já tinham revirado
tudo, me disseram. Eu não quis saber. Saí entrando de sala em sala. Me deu na
telha de subir na caixa d’água. Fica no alto de uma torre. Disseram que era
impossível ela chegar até lá, que não tinha lugar pra se esconder ali. Mas eu
subi. Até me ameaçaram. A escola tem um vigia metido a macho, que diz que faz e
acontece. Mas eu enfrento qualquer um, por ela. Subi degrau por degrau da
escadinha de ferro estragada e bambeando. Não pensei na minha vida. Ela estava
encolhidinha, num pedacinho do beiral, e segurou a minha mão. Disse que queria
tomar banho, que precisava ficar limpa. Não sei como ela conseguiu retirar água
daquela caixa gigante, pra se molhar. Se caísse lá dentro?... Talvez se
afogasse... E se escorregasse lá embaixo?... Meu Deus!, não quero nem pensar! E
não podíamos descer: ela estava muito nervosa. Eu gritei pelos bombeiros.
Quando eles chegaram, fiquei aliviado. Os soldados puseram a gente no chão. Foi
trabalhoso. Ela não queria descer com o soldado. Chamava o meu nome. O senhor
sabe que depois do que aconteceu, tivemos de cobrir todos os espelhos de casa?
Era olhar um espelho e começar a gritar e arranhar o corpo. A mãe levou no
terreiro, o Caboclo atendeu... deu os passes...
mas disse que não era nada dos espíritos Minha mulher se aborreceu, e
abandonou o santo, que ela amava... Como eu dizia, os bombeiros tiraram a gente
de lá, mas o senhor sabia que do lado de fora da escola os alunos e até as
mulheres começaram a gritar? Diziam que a gente arrumou aquela confusão, que
fechamos a escola por uma bobagenzinha. Ela se encolhia, com medo. Eu não ia
deixar a minha filha pra brigar com ninguém. Mas fui obrigado. Quando aquela
gente passou a gritar “encardida!”, “encardida!”, ela avançou nos moleques. E
as mães esqueceram que Letícia é uma criança... Agora estou aqui, diante do
senhor, que é psicólogo e quem sabe é pai também...
Depois
de um expressivo silêncio, o pai disse:
-
O racismo mata até nossos nomes: é escurinho, pretinho, marronzinho, negão,
encardida... Mas minha filha se chama Le-tí-cia.
-
É um lindo nome...
-
É o nome da bisavó.
O
psicólogo pensou em dizer algo sobre o vírus do racismo e seus queloides
históricos, mas recuou. Aquela família já sofrera o bastante; o ocorrido,
inclusive, terminou numa delegacia de polícia. Pousou a mão no ombro do pai e
apenas o convidou a ir ao encontro de Letícia que os aguardava na outra sala,
na companhia de uma atendente:
-
Vamos ver nossa menina.