quarta-feira, 2 de abril de 2014

LETÍCIA de Hélio José lima penna

LETÍCIA

Hélio José lima penna

             - Letícia reclamava que os colegas a chamavam de encardida, quando ela passava. Minha filha sempre foi muito alegre; mudou de uma hora pra outra. Chegou em casa chorando. A diretora dizia que era bobagem, coisa de criança, que ia repreender os meninos. Mas acho que a diretora não fez nada, pois, na semana passada, Letícia sumiu da escola, depois de uma confusão no recreio. Eu larguei o trabalho, fui procurar minha filha. Já tinham revirado tudo, me disseram. Eu não quis saber. Saí entrando de sala em sala. Me deu na telha de subir na caixa d’água. Fica no alto de uma torre. Disseram que era impossível ela chegar até lá, que não tinha lugar pra se esconder ali. Mas eu subi. Até me ameaçaram. A escola tem um vigia metido a macho, que diz que faz e acontece. Mas eu enfrento qualquer um, por ela. Subi degrau por degrau da escadinha de ferro estragada e bambeando. Não pensei na minha vida. Ela estava encolhidinha, num pedacinho do beiral, e segurou a minha mão. Disse que queria tomar banho, que precisava ficar limpa. Não sei como ela conseguiu retirar água daquela caixa gigante, pra se molhar. Se caísse lá dentro?... Talvez se afogasse... E se escorregasse lá embaixo?... Meu Deus!, não quero nem pensar! E não podíamos descer: ela estava muito nervosa. Eu gritei pelos bombeiros. Quando eles chegaram, fiquei aliviado. Os soldados puseram a gente no chão. Foi trabalhoso. Ela não queria descer com o soldado. Chamava o meu nome. O senhor sabe que depois do que aconteceu, tivemos de cobrir todos os espelhos de casa? Era olhar um espelho e começar a gritar e arranhar o corpo. A mãe levou no terreiro, o Caboclo atendeu... deu os passes...  mas disse que não era nada dos espíritos Minha mulher se aborreceu, e abandonou o santo, que ela amava... Como eu dizia, os bombeiros tiraram a gente de lá, mas o senhor sabia que do lado de fora da escola os alunos e até as mulheres começaram a gritar? Diziam que a gente arrumou aquela confusão, que fechamos a escola por uma bobagenzinha. Ela se encolhia, com medo. Eu não ia deixar a minha filha pra brigar com ninguém. Mas fui obrigado. Quando aquela gente passou a gritar “encardida!”, “encardida!”, ela avançou nos moleques. E as mães esqueceram que Letícia é uma criança... Agora estou aqui, diante do senhor, que é psicólogo e quem sabe é pai também...
Depois de um expressivo silêncio, o pai disse:
- O racismo mata até nossos nomes: é escurinho, pretinho, marronzinho, negão, encardida... Mas minha filha se chama Le-tí-cia.
- É um lindo nome...
- É o nome da bisavó.
O psicólogo pensou em dizer algo sobre o vírus do racismo e seus queloides históricos, mas recuou. Aquela família já sofrera o bastante; o ocorrido, inclusive, terminou numa delegacia de polícia. Pousou a mão no ombro do pai e apenas o convidou a ir ao encontro de Letícia que os aguardava na outra sala, na companhia de uma atendente:

- Vamos ver nossa menina.