domingo, 30 de março de 2014

ESPELHOS de Hélio José lima Penna

Para brindar a manhã desse domingo, mais um conto do querido Hélio.
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ESPELHOS

Hélio José lima Penna


            Manoel, o dono do estabelecimento, espantou as crianças pedintes da sua loja. Eram iguais ás moscas: uma praga, que perturbava a vida dos clientes.
            - Saiam! Saiam! Suas pestes! - com o pano de prato emporcalhado, botou crianças e insetos porta afora.
              A lanchonete ficava na esquina da Rua Camerino com Marechal Floriano. Próximo ao colégio Pedro II. Uma lojinha apertada, que fedia a gordura, urina e cachaça. Hoje, Manoel está com muita raiva: a cozinheira, Maria Geralda, demitiu-se e ainda ameaçou denunciá-lo à saúde pública:
- Eu sei todas as porcarias que o senhor faz aqui! – disse-lhe a mulher.
            Sem alternativa, ele pagou os salários atrasados da empregada; deixou-a partir, e planejou a vingança.
 Mas a “desgraça” do seu dia piorou quando o fiscal da vigilância sanitária fez-lhe uma “visita de cortesia”. Contra a autoridade ele nada podia fazer, além de suborná-la. E mais dinheiro saiu do seu caixa. “Filhos da puta!... Demônios!... Miseráveis!”, esbravejava, na presença dos fregueses.
            Em frente ao colégio, o grupo de meninos e meninas prepara-se para nova investida no comércio. Quem os orienta é Ivete, a ex-prostituta:
            - Faz cara de sofredor...  Começa pelos brancos... Olha só uma vez nos olhos da pessoa... Fala em pelo amor de Deus...
            Essas crianças, às vezes, corriam em torno do colégio. Disparavam da porta principal, entravam na Rua Camerino, alcançavam a Leandro Martins, depois a Rua da Conceição - como uma revoada de passarinhos - para aninharem-se novamente na entrada do colégio, ouvindo, deleitosamente, os pulos de seus corações. Ao vê-los, Seu Arthur, o velho livreiro da Elizart , os chamava de “capitães do asfalto” e assegurava que a fome de fantasia também lhes machucava. Mas os passantes, coagidos, aterrorizavam-se com o voejar dos meninos.
            Neste grupo estava Palito, chamado assim devido a sua magreza. Tinha uns onze anos e era um novato nas ruas. Ivete apostava em suas feições miseráveis. Assim que a organização permitisse, ela o colocaria em Copacabana, para aumentar a sua renda com o peditório.
Palito sonhava em conhecer a Cinelândia... a Biblioteca Nacional... os degraus da Câmara Municipal... viajar nas escadas rolantes do Metrô... Pensava nisso quando entrou na lanchonete e abordou um cliente.
            - Homem de Deus, espanta esse diabo! – gritou Manuel ao copeiro, agitando o facão.
            O subordinado, insatisfeito com o patrão, fez-se de surdo, e deixou Palito circular livremente na loja do galego. No íntimo, desejava que o “magricelinho” furtasse alguém.  Enfurecido, o português abandonou a cozinha: “Tá surdo, o corno filho da puta?!” Bradou, e avançou contra Palito, empunhando a enorme faca. Apavorada, a criança correu em direção à Avenida Marechal Floriano, quis atravessá-la e foi atropelada por um ônibus...
            O caso estampou nos jornais durante vários dias. As televisões colocaram os seus contratados para discorrerem sobre os níveis da miséria e a segurança pública, enquanto o ocorrido deu audiência. As autoridades, finalmente, interditaram a lanchonete, onde foi encontrada variedade de imundice.
            Os comerciantes das redondezas comentavam, consternados, que o infortúnio do patrício deveu-se á feitiçaria da cozinheira. Geralda descobrira, nos búzios, que o ex-patrão mandara um capanga, no mesmo dia, roubar-lhe o dinheiro dos atrasados.
Meses depois, recuperado, Palito reaparece. Trabalha agora na Praça das Nações, sob o cuidado do protetor Jorginho; o ex-jogador de futebol que perdeu a partida para o alcoolismo. O menino faz sucesso com a sua perna manca, por causa do atropelamento.