Para brindar a manhã desse domingo, mais um conto do querido Hélio.
...
ESPELHOS
Hélio José lima Penna
Manoel, o dono do estabelecimento, espantou as crianças
pedintes da sua loja. Eram iguais ás moscas: uma praga, que perturbava a vida
dos clientes.
-
Saiam! Saiam! Suas pestes! - com o pano de prato emporcalhado, botou crianças e
insetos porta afora.
A lanchonete ficava na esquina da Rua
Camerino com Marechal Floriano. Próximo ao colégio Pedro II. Uma lojinha
apertada, que fedia a gordura, urina e cachaça. Hoje, Manoel está com muita
raiva: a cozinheira, Maria Geralda, demitiu-se e ainda ameaçou denunciá-lo à
saúde pública:
- Eu sei todas as
porcarias que o senhor faz aqui! – disse-lhe a mulher.
Sem
alternativa, ele pagou os salários atrasados da empregada; deixou-a partir, e
planejou a vingança.
Mas a “desgraça” do seu dia piorou quando o
fiscal da vigilância sanitária fez-lhe uma “visita de cortesia”. Contra a autoridade ele nada podia
fazer, além de suborná-la. E mais dinheiro saiu do seu caixa. “Filhos da
puta!... Demônios!... Miseráveis!”, esbravejava, na presença dos fregueses.
Em frente ao colégio, o grupo de meninos e meninas
prepara-se para nova investida no comércio. Quem os orienta é Ivete, a ex-prostituta:
-
Faz cara de sofredor... Começa pelos
brancos... Olha só uma vez nos olhos da pessoa... Fala em pelo amor de Deus...
Essas
crianças, às vezes, corriam em torno do colégio. Disparavam da porta principal,
entravam na Rua Camerino, alcançavam a Leandro Martins, depois a Rua da
Conceição - como uma revoada de passarinhos - para aninharem-se novamente na entrada
do colégio, ouvindo, deleitosamente, os pulos de seus corações. Ao vê-los, Seu
Arthur, o velho livreiro da Elizart , os chamava de “capitães do asfalto” e
assegurava que a fome de fantasia também lhes machucava. Mas os passantes,
coagidos, aterrorizavam-se com o voejar dos meninos.
Neste
grupo estava Palito, chamado assim devido a sua magreza. Tinha uns onze anos e
era um novato nas ruas. Ivete apostava em suas feições miseráveis. Assim que a organização permitisse, ela o colocaria
em Copacabana, para aumentar a sua renda com o peditório.
Palito sonhava em conhecer
a Cinelândia... a Biblioteca Nacional... os degraus da Câmara Municipal...
viajar nas escadas rolantes do Metrô... Pensava nisso quando entrou na
lanchonete e abordou um cliente.
-
Homem de Deus, espanta esse diabo! – gritou Manuel ao copeiro, agitando o
facão.
O
subordinado, insatisfeito com o patrão, fez-se de surdo, e deixou Palito
circular livremente na loja do galego. No íntimo, desejava que o “magricelinho”
furtasse alguém. Enfurecido, o português
abandonou a cozinha: “Tá surdo, o corno filho da puta?!” Bradou, e avançou
contra Palito, empunhando a enorme faca. Apavorada, a criança correu em direção
à Avenida Marechal Floriano, quis atravessá-la e foi atropelada por um
ônibus...
O
caso estampou nos jornais durante vários dias. As televisões colocaram os seus
contratados para discorrerem sobre os níveis da miséria e a segurança pública,
enquanto o ocorrido deu audiência. As autoridades, finalmente, interditaram a
lanchonete, onde foi encontrada variedade de imundice.
Os
comerciantes das redondezas comentavam, consternados, que o infortúnio do
patrício deveu-se á feitiçaria da cozinheira. Geralda descobrira, nos búzios,
que o ex-patrão mandara um capanga, no mesmo dia, roubar-lhe o dinheiro dos
atrasados.
Meses depois, recuperado, Palito reaparece. Trabalha
agora na Praça das Nações, sob o cuidado
do protetor Jorginho; o ex-jogador de futebol que perdeu a partida para o
alcoolismo. O menino faz sucesso com a sua perna manca, por causa do
atropelamento.